Um panorama técnico sobre os desafios, soluções e oportunidades no saneamento e abastecimento
A água é um recurso essencial, não apenas para a sobrevivência humana, mas para o pleno funcionamento das atividades produtivas e o equilíbrio dos ecossistemas. Paradoxalmente, o Brasil — país com a maior reserva de água doce superficial do planeta (cerca de 12% do total mundial) — ainda convive com cenários críticos de escassez hídrica, abastecimento precário e falta de saneamento.
A questão não está apenas na disponibilidade do recurso, mas na gestão, no tratamento e no uso responsável da água. Em vez de tratar bem a água que tem, o Brasil, em muitos aspectos, a desperdiça, polui e distribui de forma desigual.
Acesso à água tratada: desigualdade geográfica e social
Segundo o Instituto Trata Brasil (2023), 84,9% dos brasileiros têm acesso à água tratada. Isso representa um avanço em relação a décadas passadas, mas ainda deixa de fora mais de 33 milhões de pessoas — a maioria concentrada nas regiões Norte e Nordeste e em áreas periféricas de grandes centros urbanos.
O cenário é mais grave na zona rural. Dados do IBGE revelam que apenas 32,3% dos domicílios rurais são abastecidos por rede pública de água. O restante depende de poços, nascentes ou caminhões-pipa, muitas vezes sem qualquer tipo de controle de qualidade.
A desigualdade no acesso à água tratada também está relacionada à renda e à infraestrutura urbana. Municípios mais pobres ou menos populosos tendem a receber menos investimentos, agravando a vulnerabilidade de populações inteiras.
Perdas no sistema de distribuição: uma crise silenciosa
As perdas de água no sistema de distribuição continuam sendo um dos maiores entraves à eficiência do setor. O Brasil perde, em média, 37,8% de toda a água tratada antes de ela chegar ao consumidor final — seja por vazamentos, fraudes ou erros operacionais. Em estados como Amapá e Amazonas, essas perdas ultrapassam 70%.
Além do desperdício direto de um recurso caro e escasso, as perdas representam custos operacionais elevados para companhias de saneamento, que precisam captar, tratar e bombear mais água do que o necessário. Segundo estimativas do Instituto Trata Brasil, reduzir essas perdas em apenas 10 pontos percentuais geraria uma economia superior a R$ 1,4 bilhão por ano.
Esgotamento sanitário: um déficit que contamina nossos rios
Se o fornecimento de água tratada apresenta deficiências, o cenário do esgotamento sanitário é ainda mais alarmante. Apenas 51,2% do esgoto gerado no país é tratado, enquanto mais de 90 milhões de brasileiros vivem sem acesso à rede de coleta. Isso significa que milhares de litros de esgoto são lançados diariamente em rios, córregos e mananciais, contaminando corpos d’água que poderiam ser fontes de abastecimento.
O descaso com o esgoto compromete a saúde pública, o meio ambiente e o potencial de reutilização da água. Soluções como o reuso de efluentes tratados, cada vez mais comuns em países como Israel, Singapura e Austrália, ainda caminham a passos lentos no Brasil.
Consequências para a saúde pública e meio ambiente
A precariedade no tratamento da água e do esgoto gera impactos diretos na saúde da população. Em 2023, foram registradas mais de 191 mil internações por doenças relacionadas à água contaminada, como diarreias infecciosas, hepatite A e leptospirose (Boletim do Saneamento, 2023).
Além disso, a contaminação de rios e aquíferos compromete a biodiversidade aquática e reduz a disponibilidade de água potável. O custo ambiental do saneamento deficiente é incalculável, afetando cadeias produtivas inteiras e acelerando processos de degradação ecológica.
Investimentos e políticas públicas: estamos tratando o problema?
O Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020) estabeleceu metas ambiciosas: até 2033, 99% da população deverá ter acesso à água potável e 90% à coleta e tratamento de esgoto. Para isso, estima-se a necessidade de investimentos da ordem de R$ 700 bilhões em infraestrutura, capacitação e inovação tecnológica.
Embora alguns avanços tenham ocorrido, muitos municípios ainda enfrentam dificuldades para atrair investimentos e elaborar planos de saneamento consistentes. A descentralização da gestão, a complexidade regulatória e a falta de planejamento estratégico são obstáculos frequentes.
Oportunidades profissionais no setor de saneamento
Apesar dos desafios, o cenário de transformação do saneamento brasileiro abre um leque de oportunidades profissionais. O crescimento dos investimentos em infraestrutura e a exigência por qualidade nos serviços têm gerado demanda por especialistas em diversas áreas:
- Engenharia Sanitária e Ambiental: profissionais capacitados para projetar, operar e gerenciar sistemas de abastecimento, tratamento de esgoto e reuso.
- Operadores e técnicos de ETA/ETE: com conhecimento prático sobre processos físico-químicos e biológicos, esses profissionais são essenciais para garantir a eficiência dos sistemas.
- Gestores e consultores em saneamento: responsáveis por elaborar planos de saneamento, captação de recursos, licenciamento ambiental e monitoramento de indicadores.
- Especialistas em controle de perdas e eficiência hídrica: com foco em tecnologias digitais, GIS, IoT e automação de sistemas.
A qualificação contínua desses profissionais é vital para o alcance das metas nacionais. Iniciativas como cursos de extensão, pós-graduações e treinamentos técnicos — como o curso “Tecnologias e Processos de Tratamento Convencional de Água em ETA – Operação e Gestão” — são instrumentos estratégicos para formar uma nova geração de profissionais preparados para transformar o setor. (https://cursos.engeduca.com.br/courses/agua-segura-operacao-e-gestao-de-estacao-de-tratamento-de-agua-eta-convencional)
Conclusão
O Brasil ainda trata mal a água que tem — seja por negligência, por ineficiência ou por desigualdade histórica. Mas há soluções possíveis e caminhos claros a seguir. Investir em infraestrutura, qualificar profissionais e fortalecer políticas públicas são os pilares de uma transformação urgente.
Mais do que um desafio técnico, o saneamento é uma questão de justiça social, de preservação ambiental e de dignidade humana. E enquanto o país não encarar essa pauta com a seriedade necessária, continuará desperdiçando não só água, mas também oportunidades de desenvolvimento sustentável.
Referências:
Ministério do Desenvolvimento Regional. Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB). https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/saneamento/plansab
Instituto Trata Brasil. Principais Estatísticas. https://tratabrasil.org.br/principais-estatisticas/
Instituto Trata Brasil. Ranking do Saneamento 2023. https://tratabrasil.org.br/ranking-do-saneamento-2023/
IBGE. Acesso à água na zona rural. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/
Nexo Jornal. Perdas no sistema de distribuição de água. https://www.nexojornal.com.br/extra/2024/06/05/desperdicio-agua-tratada-brasil-estudo
Boletim do Saneamento. Internações por doenças relacionadas à água. https://boletimdosaneamento.com.br/